sexta-feira, 27 de abril de 2012

IMPORTANTE: Alimentação escolar & Receita de saúde


A gestão da alimentação escolar exige buscar o equilíbrio entre educação, nutrição e desenvolvimento local
Cristina Charão Marques
Produção agrícola local, tradições e nutrição devem ser consideradas na gestão da alimentação escolar
Arroz, feijão, bife e salada servidos a um aluno de escola pública é um prato sofisticado. A refeição faz parte do direito à educação integral e ensina os sabores e valores dos alimentos. Lá está também uma porção de saúde e nutrição, com cada garfada ajudando a garantir alimentação adequada aos alunos. E, por fim, uma bela pitada de desenvolvimento local – afinal, os ingredientes podem vir de um pequeno sítio da região. Não há uma receita, porém, que dê conta dessa sofisticação. Se cozinhar é uma arte, gerir a Política de Alimentação Escolar (PAE) de um município ou estado também exige sensibilidade e criatividade, além de muito trabalho. 

As características próprias de cada região – que vão da extensão territorial à produção agrícola local, passando pelo número de escolas e as tradições alimentares do lugar – devem ser consideradas pelos gestores. No entanto, a experiência acumulada pelos órgãos responsáveis pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), por organizações e especialistas ligados ao tema e por gestores públicos permite enumerar os itens essenciais que podem servir de base para o PAE. 

“Nossa experiência avaliando a atuação de milhares de municípios mostra que tudo começa com um gestor comprometido”, ressalta Fátima Menezes, diretora da Organização Não Governamental (ONG) Ação Fome Zero que realiza, há oito anos, o prêmio Gestor Eficiente da Merenda Escolar.

Compromisso com mudanças
Rozane Triches, nutricionista e professora da Universidade Federal do Pampa, coordenou a implementação de uma nova política de alimentação escolar em Dois Irmãos (RS). Em 2003, sensibilizados por um estudo do perfil nutricional dos estudantes que apontou altos índices de sobrepeso e baixíssimo consumo de frutas e verduras, o Conselho de Alimentação Escolar  e profissionais da prefeitura elaboraram um projeto para melhorar a qualidade da comida. “Fomos ao prefeito e ouvimos que estávamos loucos, mas, no ano seguinte, o novo prefeito comprou a ideia e começamos o projeto, hoje reconhecido internacionalmente.” 

Seis anos após ser iniciado, o programa de Dois Irmãos foi premiado em 2010 pela Organização das Nações para a Alimentação e a Agricultura (FAO) como boa prática em segurança alimentar e nutricional. O traço distintivo da política é a aposta na compra de produtos da agricultura familiar. O primeiro desafio foi mudar as tradições administrativas e encontrar maneiras de casar as exigências legais e burocráticas das compras públicas com as características da agricultura familiar. Como era novidade em 2004, foi preciso criar licitações específicas, adaptando as regras e as exigências para permitir a entrada dos pequenos agricultores na lista de fornecedores da prefeitura. 

Hoje, os gestores são mais exigidos na escolha dos fornecedores, mas têm menos dificuldades com a burocracia. Desde 2009, a lei federal que rege o Pnae exige que 30% dos alimentos adquiridos com o repasse do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) sejam comprados diretamente da agricultura familiar, mas estabelece condições especiais, exigindo uma documentação simplificada dos produtores e criando chamadas públicas específicas. Ainda assim, o FNDE e também o Ministério do Desenvolvimento Agrário têm concentrado esforços na regularização dos agricultores e na capacitação dos gestores. A coordenadora geral do Pnae, Albaneide Peixinho, diz que o trabalho é mostrar que a solução está perto. “Os munucípios, em sua maior parte, são pequenos e rurais.”

Pequenos produtores
Ainda assim, é preciso algum trabalho para fazer a oferta encontrar a demanda. Rozane lembra que os pequenos agricultores têm dificuldades em lidar com as exigências sanitárias, por falta de prática e também de infraestrutura. Em Dois Irmãos, que conta com uma área rural organizada em pequenas propriedades, as dificuldades foram dribladas com o diálogo. “Dentro do CAE, tínhamos representantes dos agricultores, da vigilância sanitária, da Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater) e, conversando, íamos identificando os produtores e suas dificuldades. Esse diálogo permanente fez a diferença”, relata. 

Segundo Fátima Menezes, o número de municípios que criam projetos para aproximar a agricultura familiar das escolas está aumentando significativamente. Em alguns casos, estimular a associação entre os agricultores é uma solução. Em outros, é necessário o apoio para que eles passem a processar minimamente os alimentos, o que cria múltiplos benefícios. Por exemplo, entregar mandioca descascada diminui o trabalho das cozinheiras e, ao mesmo tempo, aumenta o valor agregado do produto. Outra questão central é a distribuição. Em geral, pequenos produtores têm dificuldades de lidar com essa logística. Por isso, os gestores podem, eventualmente, investir em infraestrutura – caminhões frigoríficos ou centrais de armazenamento e distribuição – para apoiar os agricultores e garantir também a qualidade das refeições.

No município gaúcho, a solução para comprar carne dos agricultores familiares envolveu a associação entre produtores e abatedouros e a construção de um pequeno açougue municipal. “O agricultor manda o animal para o abatedouro e paga o serviço com o couro”, conta Rozane. “O abatedouro entrega a carcaça e os cortes são feitos nesta sala construída pela prefeitura.” A sala custou cerca de R$ 42 mil, investimento pago em dois anos com a economia nas compras. Além disso, as crianças comem hoje filé mignon e alcatra, não mais a carne moída que vinha de um frigorífico de Porto Alegre e já chegava com cheiro ruim por conta do tempo dentro do caminhão de entrega.

Nas grandes cidades e regiões metropolitanas, as dificuldades para garantir alimentos frescos e in natura são maiores, pois há poucos produtores rurais. O FNDE realiza os Seminários Metropolitanos, reunindo as prefeituras para que encontrem soluções  conjuntas. 

Em Guarulhos, na Grande São Paulo, o uso de enlatados e embutidos foi praticamente zerado e cerca de 45% das compras já vêm da agricultura familiar. Isso exigiu, de início, uma busca ativa por produtores da região, o que não foi sempre muito eficaz. “Fizemos 11 chamadas públicas, mas muitas não tiveram resposta e outras foram atendidas por cooperativas de outras regiões”, relata Marcelo Colonato, do Departamento de Alimentação Escolar da Secretaria Municipal de Educação. A porcentagem alta de produtos da agricultura familiar é garantida com produtos pouco perecíveis, como arroz, feijão e maçã. Boa parte deles  orgânicos.

Na cozinha
Ainda é preciso pensar na outra ponta do processo: a cozinha e, afinal, os pratos servidos aos alunos. O preparo de refeições com ingredientes in natura exige adaptações do equipamento e do pessoal. Trocar o preparo de um suco em pó por suco natural, por exemplo, demanda a troca de uma jarra por um espremedor, tempo para o preparo e disposição dos cozinheiros. O mesmo vale para cenouras, que precisam ser descascadas, ou folhas de alface, que devem ser lavadas. 

O FNDE está estudando uma forma de apoiar os municípios com a infraestrutura das cozinhas. Uma possibilidade é fazer uma tomada de preços. Guarulhos está investindo na compra de multiprocessadores industriais para diminuir o tempo de preparo das refeições. “Mesmo assim, ainda é preciso pensar em outras soluções: não dá para fazer suco de laranja na hora em uma escola com 1.800 alunos, mas é possível comprar suco orgânico das cooperativas”, diz Colonato.

Além de equipamentos que ajudem a diminuir o tempo de preparo das refeições sem prejudicar o planejamento do cardápio, também é preciso investir na capacitação. Se, por um lado, as cozinheiras podem servir como elo de ligação entre as tradições alimentares locais e o cardápio escolar, de outro é comum resistirem a mudanças. Para a nutricionista Rozane Triches, a situação é facilmente driblada quando a qualidade dos gêneros aumenta e os pratos servidos às crianças vão cheios e voltam vazios. “Elas ficam satisfeitas em ter verduras mais bonitas, carne de melhor qualidade, e fazer uma comida mais gostosa”, diz. 




Escolas no controle
Escolarização da gestão pode funcionar bem, mas exige treinamento

A escolarização da gestão dos estoques e, eventualmente, das compras é uma estratégia de gestão que pode funcionar bem, com algumas exigências. Uma delas é o treinamento das equipes nas escolas. Além do gerenciamento da despensa, é preciso saber verificar a qualidade dos alimentos no ato da entrega e comprometer-se com os sistemas de controle, cada vez mais informatizados. 

No Rio de Janeiro, desde 1993 a alimentação escolar foi descentralizada em coordenadorias regionais e hoje são as escolas que gerenciam todo o processo, inclusive as encomendas aos fornecedores definidos por licitações amplas. O controle de tudo é feito por um sistema de gerenciamento on-line. O município paulista de Guarulhos opta por um sistema misto. A prefeitura mantém uma central de armazenamento e um esquema de distribuição dos alimentos não perecíveis. Já os produtos perecíveis, como verduras, são entregues porta a porta pelos fornecedores. A coordenação é feita através de visitas e do treinamento das equipes das escolas.

Segundo Albaneide Peixinho, coordenadora geral do Pnae, a tecnologia pode ser um grande aliado. O FNDE também lança mão da internet para apoiar o trabalho dos gestores ao criar a Rede Brasileira de Alimentação e Nutrição Escolar (www.rebrae.com.br). O site funciona como uma base de referências legais, administrativas e científicas, além de funcionar também como espaço para a troca de experiência. A rede está ligada aos Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar criados em nove universidades federais para dar capacitação e assessoria aos gestores.

Porém, Albaneide ressalta que a qualidade da alimentação escolar só é garantida com controle social. “É preciso envolver a população, fazer com que ela entenda a alimentação escolar como direito e garantir sua participação nos Conselhos de Alimentação Escolar”, afirma. A existência dos CAEs é uma exigência legal para que os municípios recebam os recursos do FNDE. Um conselho representativo, com conselheiros capacitados, garante a fiscalização e também um espaço qualificado para a formulação da política de alimentação escolar.

Para além da escola
A política de alimentação escolar pode ser um elemento importante no desenvolvimento local

A Lei 11.947 de 2009, que rege o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), prevê que no mínimo 30% dos recursos repassados pelo governo federal, pelo FNDE, sejam utilizados na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar ou de suas organizações. Apesar das dificuldades para que os estados e municípios cumpram a meta, o governo federal avalia positivamente o engajamento dos gestores à nova diretriz. A estimativa é de que metade dos municípios já realizou alguma compra da agricultura familiar. “Alcançar isso em dois anos é bastante significativo”, avalia Manuel Bonduki, técnico da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Os efeitos da medida vão além da melhoria da qualidade dos alimentos servidos e da redução do consumo de alimentos industrializados, com baixo teor nutritivo. Segundo Bonduki, a compra para a alimentação escolar é importante por garantir a sustentabilidade econômica das pequenas propriedades e a produção de alimentos com regularidade em todo o país. “Além do controle da inflação, já que a garantia de compra ajuda a estabilizar a oferta e os preços.” 

Outros elementos são a diminuição dos custos para os municípios – que economizam com o preço do transporte – e do impacto ambiental, seja por haver menos caminhões rodando por grandes distâncias, seja porque a lei também estimula a compra de produtos orgânicos. A oferta nas escolas funciona ainda como uma grande vitrine local: alunos, professores e funcionários passam a buscar esses produtos e recomendá-los.


Fonte: Revista Escola Pública

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